Roberto Alban Galeria

Artistas Artista

Daniel Acosta

Daniel Acosta e o Realismo Pânico

Tadeu Chiarelli

O questionar do campo tridimensional da arte brasileira tornou-se nos últimos anos o território privilegiado para o surgimento de novos e bons artistas. E não apenas dentro do eixo São Paulo - Rio-Belo Horizonte, mas também em vários ou- tros centros esses artistas espalhados pelo Brasil vêm redimensionando as noções canônicas da escultura, objeto, instalação, ampliando os limi- tes entre essas modalidades e as fronteiras entre elas e a pintura, o design, a gravura e o desenho.

Dentro dessa situação ampliada da arte brasi- leira atual surge a produção de Daniel Albernaz Acosta. Qualquer reflexão sobre essa nova situ- ação da arte brasileira que opera dentro – e no limite – do tridimensional, passa por sua trajetória e se amplia com ela.

Pensar Acosta em relação a produção de outros artistas espalhados pelo território brasileiro, é re- fletir sobre as circunstâncias naturais e culturais que seus ambientes de origem exercem em suas produções. Embora totalmente conectados com o debate artístico contemporâneo, esses artistas não extirparam de seus trabalhos soluções for- mais provenientes dos lugares onde suas peças de originaram.

Pelo contrário: em muitos casos, a base de seus trabalhos é justamente a tentativa de depuração de estímulos visuais originários de uma ambiên- cia nativa, através de procedimentos e/ou aderên- cias captadas no âmbito da arte contemporânea... Os trabalhos da primeira fase de Daniel Acosta sem dúvida seriam outros, se ele não estivesse impregnados pela situação arquitetônica/urbanís- tica de Pelotas, interior do Rio Grande do Sul.

Nascido em Rio Grande (RS), Acosta emergiu em 1989, a partir justamente de Pelotas, cidade onde iniciou sua atuação profissional como ar- tista e professor universitário. Num estado sem um patrimônio escultórico digno de seu interes- se, sua produção teve como ambiência primeira o entorno pelotense, repleto de referências arqui- tetônicas construídos entre o final do século pas- sado e o início deste. O que o cativou não foram propriamente os edifícios ecléticos e/ou art-déco que tentam resistir ao desmantelamento crimino- so da especulação imobiliária, mas os elementos ornamentais que adornam aquelas construções, e os tapumes que protegem da vista dos passan- tes, a destruição daqueles ícones de uma riqueza passada.

Os trabalhos de Acosta até 1992, 1993 – reali- zados preferencialmente em lâmina compensada púrpura -, eram a intersecção poética entre o ta- pume e o ornamento arquitetônico, entre o visível e o oculto. Preenchiam a dor do vazio de uma des- truição em contínuo devir.

Entranhadas em seu ambiente de origem, en- carnadas na realidade de Pelotas, que as abriga- va, aquelas peças como que disciplinavam os ex- cessos ornamentais dos edifícios pelotenses, ao mesmo tempo que transformavam em elementos preciosos a matéria e a cor dos tapumes que os encobriam.

Porém, a significação dessas peças nunca se restringiu ao fato de terem nascido como recria- ções dos elementos arquitetônico/urbanístico pelotenses. Não. O que é interessante é como Acosta a partir dessa base, digamos, afetiva, conseguiu ampliar a própria definição de escultura, ligando seu trabalho a uma das várias correntes da arte brasileira atual, exatamente aquela que se formula nos limites entre a pintura, o relevo, a es- cultura e o design.

A produção desse período trafega ao lado – sem nunca se confundir, porém -, e na mesma trilha por onde caminham as obras de artistas há mui- to tempo presentes no circuito brasileiro. Como a produção de Amílcar de Castro e de Carmela Gross, aquelas peças tangenciavam os limites entre a pintura e a escultura, projetavam-se para o tridimensional, preservando o plano da parede, literal ou metaforicamente.

Em São Paulo a partir de 1994, o trabalho de Acosta passa por uma transformação substancial. O impacto da caótica metrópole dentro da poética do artista ajudou a aprofundá-la, tornando-a ain- da mais madura.

Dentre as diversas transformações, em primeiro lugar chama a atenção a mudança dos materiais: se antes Acosta trabalhava preferencialmente com a madeira laminada compensada púrpura, nos novos trabalhos prevalecem o gesso e a fórmica. Do caráter quente da madeira púrpura, o artista se defronta então com a impessoalidade da fórmi- ca (metáfora de seus sentimentos em relação ao novo espaço urbano que tentamos abarcar?).

Outra transformação visível: se antes o universo do design já se manifestava na produção do artis- ta, com sua vinda para São Paulo esta caracterís- tica se amplia. Os trabalhos atuais não inspiram mais tênues associações a objetos industrializa- dos dos anos 30 e 40. Hoje são referências ex- plícitas a tablados de segurança para pedestres, pisos, banheiros, mictórios ... “ objetos indiferen- tes” de uso público e /ou privado, reestruturados pela sensibilidade de alguém que estranha o novo ambiente, porque sem dúvida Narciso acha feio o que não é espelho.

Numa cidade que substitui a cada dia os índices de sua identificação, cuja melhor síntese é uma avenida -, aqui nada nos reflete, a não ser os vi- dros dos edifícios, dos carros, e os equipamentos eletrônicos de segurança.

Como nada nos representa, e tudo tende a se apresentar como simulacro, o corpo humano – antes território mor da representação escultórica-, o corpo aparece nos trabalhos de Acosta como ausência (no “mictório”, na “banheira”, nos “la- drilhos”). Ou enquanto imanência pura, na tela da televisão. Se em Rodin o corpo é matéria, textura, volume e massa, em Acosta o corpo é sua falta ou pura superfície sem espessura (a televisão, a pele que é fórmica).

Acoplado a este estranhamento total, a vonta- de de construção de um realismo pânico frente à não realidade de São Paulo, Daniel Acosta resga- ta para sua produção, antes totalmente antenada com o vernáculo, referências eruditas inegáveis: “Marat” remete a David; “Observatório” a Du- champ; “Escultura Básica” a Carl Andre...

E como se, frente à realidade rarefeita de São Paulo – onde tudo é fachada ou via de acesso -, o artista tivesse tido a necessidade de ancorar sua sensibilidade em algum porto, identificável. No caso, a história da arte modernocontemporânea, único lugar onde hoje Acosta e outros artistas pa- recem se reconhecer.

Caracterizadas as mudanças, resta chamar a atenção para o que se manteve constante no tra- balho do artista.

Suas peças atuais, como as anteriores, continu- am a trafegar entre as definições convencionais da pintura e da escultura, tendo no relevo seu ponto de intersecção. Acosta, apesar do caráter gélido do gesso e da total impessoalidade da fór- mica, continua a discutir simultaneamente ques- tões ligadas às tradições da pintura e também da escultura, mantendo a sua produção no fértil não -lugar do relevo – espaço rico da arte brasileira nos últimos trinta anos.

A mudança para São Paulo, o contato coma me- trópole cuja identidade não são os velhos prédios, nem a natureza, nem a cor local mas, justamen- te, a negação de qualquer possibilidade de iden- tidade, não fez com que os trabalhos de Acosta mudassem nessa sua característica básica: eles continuam dependentes do plano, discutindo pro- blemas da pintura e da escultura. Ao mesmo tem- po, numa continuidade que só o enriquece.

Pensar a produção de um artista levando em conta suas relações com o meio onde ele atua, só parece possível neste final de século, após a derrocada dos valores das vanguardas européias e norte-americanas, tornados internacionais. No caso específico da arte brasileira atual, mais e mais artistas ainda jovens, deixam de lado os ex- cessivos rigores do formalismo vários daquelas tendências, direcionando seus interesses artísti- cos e estéticos na busca de uma síntese profunda entre a arte e a vida, em seu sentido mais amplo.

O caso de Daniel Acosta parece exemplar. Os trabalhos recentes que ora apresenta em São Paulo dão conta de provar o quanto pode ser pro-

fícuo o exercício do artista deixar-se penetrar pelo estímulos do ambiente onde vive, por mais hostil que ele seja. Suas obras, transpiram o ambien- te onde foram concebidas e executadas. Se hoje o realismo pânico de seus trabalhos extravasam uma freqüência semelhante as obras de Ana Ma- ria Tavares e Iran do Espírito Santo (os mais ins- tigantes tradutores de São Paulo, atualmente), é porque, sem dúvida são a síntese de uma sensibi- lidade construída em outro lugar, que não se dei- xa intimidar pelo constante massacre do eu numa cidade como esta megalópole... e reage.

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