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Artistas Artista

Ricardo Homen

Ricardo Homen

Lorenzo Mammi

É notório que de cores não se pode falar, senão por taxonomias ou por figuras de linguagem. A única maneira de descrever uma cor é indicar um objeto que a apresente -- ou então estabelecer sua posição entre cores próximas: amarelo esverdeado, vermelho alaranjado. Mas, como a transição de uma cor para outra admite nuanças infinitas, os nomes das cores se multiplicam, e nada mais são, todo eles, senão maneiras sintéticas de descrevê-las indicando um objeto que a possua, ou uma substância utilizada para sua fabricação. O nome “vermelho” vem do molusco (vermiculum) que se usava na tintura dos tecidos; “verde”, do revigorar (virescere) das plantas; “amarelo”, talvez, do amargo da bile. Ocra é uma argila, Magenta uma cidade onde se produzia o carmim, e nem precisa explicar “terra de Siena”, “ultramar”, “violeta”, “laranja”. Afinal, as taxonomias também são metáforas ou metonímias: não conseguimos falar das cores, e talvez nem sequer pensar nelas, sem fazer referência a objetos a que de alguma forma estejam relacionadas. Podemos extrair de uma obra um esquema gráfico, mas não, por exemplo, o vermelho do Atelier rouge de Matisse: ele só é aquele vermelho naquele quadro, e o quadro só é aquele por aquele vermelho. A cor em si não existe.

As cores mudam dependendo da iluminação, do contraste com as cores próximas, dos indivíduos que olham. Há, isso sim, a possibilidade de estabelecer gradações de luminosidade: essa é uma questão de quantidade, sujeita a medidas. Ma a qualidade própria da cor, sua essência, é algo incomunicável. Justamente porque podemos apenas indicá-la e não descrevê-la, nada garante que os outros vejam o mesmo do que nós. É exatamente por seu caráter inefável, no entanto, que a cor assumiu um valor central na arte, a partir do momento em que esta renuncia a suas pretensões de objetividade matemática --Ticiano talvez seja o divisor de águas. A cor se torna, desse ponto de vista, a questão artística por excelência, justamente porque, como a arte, não pode ser reduzida a conceitos ou a dados factuais. 

Chega-se a consensos, porém. Nossa cultura estética é tecida de experiências cromáticas que se supõe serem compartilhadas: o azul de Giotto, o vermelho de Ticiano, o amarelo de Van Gogh. Todos os vemos, e imaginamos que reverberem em todos com intensidade análoga. O artista que combina as cores pressupõe que quem as olhará possua uma sensibilidade parecida com a sua. Pela mesma via, quem as olha confia que possa reconstituir a intenção do artista. As cores nos compensam da frustração de não comunicar diretamente nossos sentimentos. Não explicam nem podem ser explicadas e é por isso mesmo que demandam uma aposta, exigem a crença de que o outro seja nosso semelhante. 

Na arte moderna, o mestre dessa aposta é certamente Matisse. Mas, na transição para o contemporâneo, a questão toma outros rumos. As telas de Rothko têm a consistência material e a feitura tranqüila de uma parede caiada, como já observou Argan, ao mesmo tempo em que sugerem o vapor impalpável de uma epifania. As variações cromáticas sutilíssimas de Ad Reinhardt remetem a o ato de pintar, como valor que basta a si mesmo. Brice Marden cria, inclusive pelo uso da encáustica, uma luminosidade objetivada, ainda que imaterial, pela qual o artista tenta conciliar a intensidade expressiva da american way of painting com a objetividade literal do suporte, própria da estética minimalista. A cor já não é expressão de uma intensificação da experiência do mundo, como ainda era em Matisse, e sim de uma intensificação da própria experiência de pintar, de seus atos e materiais. Mas essa materialidade não leva a uma mera tautologia. Que a ação humana ainda possa se tornar fato concreto é algo que as teorias do pós-moderno colocaram em dúvida, mas não aboliram de tudo. Onde o movimento do fazer conserva algo de subjetivo e íntimo, ou onde a exploração do mundo se deixa conduzir pela intuição individual, ali volta a emergir certa condição de realidade.

O trabalho de Ricardo Homen se insere nessa margem. As suas são revelações mansas, hipóteses de transcendências construídas metódica e pacientemente, mais do que iluminações súbitas. Que teimem a manter o caráter de hipóteses, já o denuncia a escolha do suporte. Acontece raramente que Homen pinte uma tela: seu material de eleição é o papel. Costumamos associar o papel à condição de estudo ou projeto, não de obra acabada. É um resultado pontual, uma experiência, não propriamente um objeto. É leve, móvel, dobrável: sua rigidez lhe é dada por elementos exteriores (a moldura, o vidro, a pasta, o plano da mesa). O artista que mostra seus desenhos um a um, tirando-os de uma pilha, revela seus procedimentos de maneira mais íntima e direta do artista que coloca seus quadros, um após o outro, contra a parede do ateliê. Quando Adorno escreveu, na Teoria Estética, que cada obra é inimiga mortal da outra, provavelmente estava pensando em quadros. Os quadros, de fato, demandam apreciações individuais, os desenhos se dispõem espontaneamente em séries.  Os desenhos são amigáveis: explicam-se reciprocamente, reiteram um ao outro. 

Além disso, o papel não absorve tanto a cor, não faz corpo com ela. Pode ser um fundo, mas nunca é um volume – nesse sentido também, resiste a se constituir como objeto. As áreas coloridas se apóiam nele, mas precariamente, como se a qualquer momento pudessem ser deslocadas – aliás, Ricardo Homen, significativamente, não fala em áreas, mas em blocos de cor. 

Os esquemas que Ricardo utiliza são simples, mas carregados de significados que a história recente da pintura depositou neles. Para lê-los adequadamente, podemos tomar como ponto de partida aquela vertente da pintura americana que, durante e depois do minimalismo, não se colocou em termos de ruptura, e sim de desenvolvimento e relação ao expressionismo abstrato: Agnes Martin, Robert Ryman, Brice Marden. A grade, por exemplo: desenhada assim, a lápis, remete às composições da Martin de final da década de 1950 e início da de 1960. Mas a artista americana trabalhava principalmente sobre tela, e a cor, quando havia, era leve, quase fosse aquarela. Dessa maneira, a materialidade objetiva do suporte era negada, ao mesmo tempo em que a regularidade implacável do desenho abolia a subjetividade expressiva do gesto. Sobrava uma espécie de emoção desencarnada, um eu esvaziado – é por isso que Agnes Martin é tantas vezes aproximada a Cage. 

Ricardo Homen faz o caminho inverso: a partir da imaterialidade do suporte, o movimento incerto do traço devolve subjetividade à grade; a densidade das tintas (que, desse ponto de vista, estão mais para Ryman do que para a Martin) restitui um corpo às cores. Não se trata, aqui, de recuperar o eu transbordante dos expressionistas, mas de reconstituir lentamente uma individualidade (da obra, antes do que do artista) mediante aproximações, pequenos acertos. A linha é aquele traço específico justamente porque não é de todo reta. E as cores são sensações reais, e não abstrações conceituais, inclusive porque não se adaptam perfeitamente à área que lhe foi destinada: às vezes não a preenchem e deixam entrever o branco do papel; às vezes a ultrapassam, e borram o grafite. O próprio branco, quando não é resto entre o bloco de cor e a linha, ocupa as células por uma tinta que nunca é branco puro, mas sempre vira um pouco para o creme ou para o rosa. Em suma: o problema que cada obra levanta nunca é questão de langue, e sim de parole; nunca de regra gramatical, sempre de discurso concretamente pronunciado, num momento e numa situação específica e irrepetível. 

Na vida real, a repetição não é mera reapresentação do mesmo: gera mudanças. Mesmo nos trabalhos em que os blocos são todos da mesma cor, pode acontecer que uma sombra alaranjada passe por cima de algumas áreas amarelas, por exemplo, sem que possamos dizer, numa primeira impressão, se é alteração na mistura das tintas ou ilusão de ótica. Ou que o azul seja mais denso no alto, mais ralo embaixo. Isso nos trabalhos em que a grade é composta de retângulos maiores e horizontais. Em outro esquema recorrente, a grade é mais cerrada e forma células menores, verticais. Nesse caso, a disposição dos blocos de cor é mais livre e sugere movimentos rítmicos, quase de partitura musical. Pela questão abordada – explorar como a disposição rítmica das cores influencia sua intensidade – esses trabalhos têm algo dos “cachos de uva” e das “ogivas” do último Volpi; mas um Volpi, por certo, enxugado pelas poéticas minimalistas que já lembramos: grade plana, cor única.

Contudo, a referência a Volpi não é secundária, nem remete a elementos episódicos: a pintura de Ricardo Homen, mesmo quando monocromática, é tonal. O tonalismo não é uma questão relevante na pintura americana, e tampouco em Matisse. Goza, ao contrário, de uma longa tradição no Brasil, viva até hoje. Falando muito em geral: é tonal uma pintura que utiliza a cor, e não o claro-escuro, para estabelecer gradações de luminosidade e, por consequência, distinções de profundidade. Na tradição figurativa, a cor tonal opõe à cor local -- ou seja, à coloração efetiva dos objetos representados, quando tomados singularmente – o contexto das relações cromáticas no espaço. Transposta para poéticas não figurativas, impede que o quadro se torne um objeto colorido, gerando uma sensação espacial e atmosférica que não pode ser inteiramente reduzida à superfície planar. Não espanta que a arte americana, fundamentalmente empirista, resista a ela. E talvez seja justamente por isso que no Brasil, onde o espaço público da obra raramente está dado com clareza e segurança, a construção tonal de um espaço cromático na obra tenha adquirido tamanha finura.

Seja como for, Ricardo Homen é certamente herdeiro dessa tradição. Sua habilidade em gerar gradações entre as cores (não tanto de brilho, quanto de densidade e peso) é notável. Mas, de novo: o dele é um tonalismo mediado pelos recursos de uma pintura pós-minimalista ou, melhor dizendo, pós-expressionismo abstrato. Em primeiro lugar, como já vimos, repetição, para ele, já é gradação. Uma mesma cor reiterada adquire valores diferentes por posição e pela sua relação com o branco que, por ser branco pintado e não o branco do papel, é vedação, opacidade quase absoluta. Em composições mais complexas, as combinações de áreas de cor geram relações mais diferenciadas: os blocos de cor avançam e recuam, puxam para cima ou para baixo, ficam mais encorpados ou mais rarefeitos. Ricardo não cansa de ensaiar inúmeras variantes, com a paciência e a meticulosidade com que outra referência incontornável da pintura tonal, Morandi, mudava a disposição de suas garrafas. 

Por exemplo: em dois desenhos em forma de cruz, uma faixa vertical de cor viva (vermelho e azul) atravessa uma horizontal mais escura (cinza azulado e vinho, respectivamente) sobre um fundo ainda mais rebaixado (castanho e verde musgo). À primeira vista, trata-se de três camadas superpostas, da mais escura à mais brilhante. Mas, como a faixa vertical é muito intensa para que um equilíbrio tonal seja estabelecido, ela ameaça a cada momento subverter a ordem, denunciar o arranjo e trazer tudo de volta para o plano. Alguns dos melhores trabalhos de Ricardo Homen, a meu ver, são justamente aqueles em que a ordem tonal é tensionada quase até o ponto de ruptura, sem ultrapassá-lo por completo.

Outra série de desenhos verticais utiliza apenas um rosa carne que tende ao creme distendido sobre esquemas de linhas ortogonais traçadas em grafite grosso, hesitantes e bastante borrado pela passagem da tinta. São os trabalhos que mais remetem ao corpo, não apenas pela óbvia referência da cor, mas também pelo pela aparência gordurosa, mole do traço. Não há nada de antropomórfico nessas linhas. A maneira de elas afundarem na tinta é que dá ao conjunto certa consistência de carne.  

Às vezes, uma faixa vertical de cor intensa atravessa um fundo escuro, acima do qual se dispõe uma ou várias faixas horizontais de outras cores. É um esquema que remete irresistivelmente a uma composição tradicional de paisagem, com vários planos de profundidade e uma estrada que faz a ligação entre primeiro, segundo e terceiro plano. A associação com a paisagem se torna mais evidente quanto mais os contornos das faixas são incertos e as cores quentes e translúcidas. E, no entanto, talvez alcance sua maior pregnância, justamente porque forçada até o limite, em sua versão mais geométrica, com uma larga faixa vertical laranja sobre um fundo marrom escuro e, no horizonte, uma faixa horizontal cinza chumbo.

Nos trabalhos em rosa carne e nas “paisagens”, Ricardo Homen quase chega a reconstituir, a partir da mera justaposição das cores, um corpo e um mundo. Mas, no fundo, todos seus trabalhos fazem isso. Mesmo onde não é possível estabelecer nenhuma relação com esquemas compositivos ou tratamentos das cores da tradição figurativa, os blocos de cor tendem a se tornar corpos, as relações entre eles a estabelecer um espaço. Entre a sutileza da tradição tonal e os jogos de linguagem de muita pintura contemporânea, Ricardo Homen não toma partido, mas busca mediações.  Ele não é um artista da ruptura, mas da civilização. Preocupa-se em estabelecer níveis de consenso sempre mais avançados sobre o que o ato de olhar pode nos dizer, e esse consenso não pode ser baseado em declarações de princípio ou regras acadêmicas, mas apenas em exemplos. Os avanços são passo a passo porque, é bom lembrar de novo, nada garante que os outros vejam as mesmas cores do que nós. Mas enfim: avançamos, e é um progresso que não pode ser resumido em conceitos, mas apenas reafirmado voltando àquela combinação de cores, naquela obra singular. A obra é o lugar a que voltamos não para cumprir um ritual, mas para confirmar uma experiência comum. É nesse sentido que a pintura de Homen é essencialmente civil, no mesmo sentido em que se diz que, abaixo das instituições estabelecidas, existe uma sociedade civil.

 

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